texto PEDRO FARO

360 graus.

Na actualidade, a relevância da imagem é óbvia.
“Vivemos uma época de imagens, em que a sua eficácia, transformada e transmitida, é que nos diz aquilo em que devemos acreditar, em todo o mundo. É através do poder das imagens que lidamos com o nosso passado histórico e com os nossos desejos para o futuro”, refere Judith Barry em Quarto Rodopiante: histórias múltiplas e indeterminadas (Negociações na Zona de Contacto), insistindo, ainda, na oportunidade da “dialéctica do ver”, postulada por Walter Benjamin. “É a experiência, que temos oportunidade de adquirir quase diariamente, que nos determina a distância e o ângulo de visão”, sublinha Benjamin (O Narrador).
Imagem. O tempo e o espaço. Imagem fixa e em movimento. A imagem da imagem, pensada em momentos diferenciados. Mónica Gomes pensa a sua matéria e estrutura, considera plástica e simbolicamente a sua vivência, elabora uma imagem sobre a vida das imagens, uma experiência imagética. A partir da sua desconstrução, sobreposição, reconstrução, ampliação e manipulação, em vários níveis ou camadas, somos convidados a entrar num território processual que trabalha a espessura do que vemos e a experiência da visão nas suas várias dimensões. Tautologias que nos revelam a imanência do processo, “a implosão da matéria e a cristalização de dimensionalidades”.
Durante uma das visitas da artista a Lisboa – neste momento, vive em Praga, República Checa –, falámos sobre o seu universo, os seus interesses, questionámos e cruzámos teorias. Tentámos fixar a conversa numa cassete mas a fita partiu-se e as ideias dialogadas tornaram-se difusas e o factual, neste texto, corre, e assume, o risco de se tornar ficção. Tal como as imagens ou a imagem, enquanto conceito, que a artista explora e investiga. “Parece-me delicioso que se tenha partido a fita da cassete. Gosto de constatar quão falíveis são os documentos”, responde-nos numa longa carta, onde nos esclarece algumas dúvidas e nos introduz no seu universo criativo: “Um escavar reminiscente pelo processo”. Escavamos.
INFINITO
Afinal o que entendemos por imagem? Uma questão que revela um infinito labirinto de possibilidades, tal como a imagem literária da Biblioteca de Babel, de Borges, obra referida pela artista. Mónica Gomes recusa a noção de memória na avaliação do que vemos; não é isso que lhe interessa explorar. O que nos apresenta não são as suas memórias ou vivências mas um material supostamente anónimo, cujo potencial narrativo não é, de todo, o importante, apesar dessa possibilidade estar, obviamente, subjacente. Dissecam-se, através de diferentes dispositivos, os seus meandros e inerências fenomenológicas, as valências do aqui e agora, do valor de ser no presente, actuante. Interessam-lhe, como nos diz, “as encenações e fascínios pela sucessão de imagens, pelo acontecer e suceder de imagens no tempo, pelo fenómeno da observação de imagens, seja de arquivo ou de uma paisagem de uma varanda de subúrbio”.
As suas referências são múltiplas, “pilhas de referências que podia catalogar, sou mesmo dispersa, deixo livros a meio para começar outros e voltar aos outros mais tarde, sem ter a memória perfeita dos seus inícios”. Mas sublinha o impacto do livro De Profundis, Valsa Lenta, de José Cardoso Pires, e da “penumbra branca” que atacou a sua capacidade de ler e escrever e no qual, contínua, “descreve-se como a um Outro, ‘diante de um televisor onde as imagens lhe aparecem sem conotações umas com as outras num discurso conflituoso’”. Outras balizas intelectuais são Derrida, Walter Benjamin, Calvino, Borges e Eco, as estratégias e os processos da linguagem, a narrativa, o narrador, a memória e o esquecimento. E, ainda, Susan Sontag, Goethe, Gary Hill, Bruce Nauman, Michael Snow, Peter Slöterdijk, James Coleman, Olafur Elliason, Francis Alÿs, Bill Viola, Chris Marker, os filmes mudos dos irmãos Lumière e de Edison, Robert Beavers, Tacita Dean, Fischli & Weiss, Samuel Beckett, João Penalva, Godard, Bresson, Satyajit Ray, Mizoguchi, Wenders, Tarkovsky, Chantal Akerman e os filmes do Warhol, entre muitos outros que entram e saem desta lista que, segundo a artista, “não tem validade nenhuma, até porque nunca sabemos de onde é que as coisas vêm realmente”, realçando que há muitas outras que não lhe ocorrem e que “são provavelmente as verdadeiras referências”.
PRÉMIOS
Mónica Gomes, nomeada para o Anteciparte e para o Prémio EDP 2007, apresentou, para as iniciativas referidas, diferentes projectos que, no entanto, e em ligação, colocam em foco a problemática em torno da imagem. No Anteciparte, no Museu de História Natural, aparecem-nos as Foto Grafias, desenhos feitos a partir de cartas de amor escritas entre 1962 e 1965, ao jeito de um copista, “reprodução escrita primordial”, a partir de um processo que torna as palavras quase ilegíveis, revelando outros elementos da textualidade que não o texto propriamente dito, ou sublinhando outros textos, além do literal. O título sugere-nos o aspecto central deste projecto: desenhos de luz. Validam-se documentos na actualidade como propulsores de nova experiência, passíveis de enformarem novas dimensões sociais. A imagem é experiência contínua, “já não são representações directas dos acontecimentos a que se reportam (fotografias e cartas de amor dos anos 60) mas são, antes, resultado de um distanciamento que é todo o gesto de (impossibilidade de) leitura desses acontecimentos silenciosos. Fixam-se entre o documento e a ficção, o desenho e a fotografia, a transparência e a opacidade. A superfície da imagem é depósito às camadas. Infinito”, escreve Mónica Gomes no catálogo do Anteciparte. No seguimento disto, encontramos Imagem I, Desconstruída II, Camada sobre camada III, Reconstruída IV, Fixada V, no qual é evidente este mesmo processo.
MÉTODO
A obra de Mónica Gomes é aberta a várias possibilidades conceptuais e técnicas. Recorre a diferentes dispositivos, por vezes mais tecnológicos, convocando saberes físicos e de engenharia – como na exposição do Prémio EDP – e, outras vezes, mais simplificados e artesanais, bastando pouco mais do que uma imagem. “Às vezes, começo com imagens. Outras vezes, começo por escrever. Passo tempos só a ler e a escrever. E, em paralelo, capturando imagens, construindo uma espécie de constelação de sentidos”, revela-nos, insistindo na distinção entre constelação e diagrama e inerente dimensão subjectiva do olhar, enquanto interpretador presente na primeira configuração, naturalmente cintilante. “Nada de contínuo, geralmente bastante fragmentado e disperso, que depois se vai consolidando em experiências no estúdio e em conversas com pessoas”, continua e refere, ainda, que muito do trabalho “é feito fora, em oficinas, estúdios de som, de fotografia, a caminhar, a discutir ideias”. Assim, “cada peça nasce de uma relação específica entre mim e vários processos de análise e interpretação” e de cada obra nasce outra e de intenções iniciais passam-se para outras considerações e questões. As dúvidas da artista abrangem um universo de 360º, sem horizonte definido, sem expectativas delimitadas. As possibilidades são indefinidas pela abrangência infinita de um céu, tantas vezes visto pela história da arte, literatura, ciência, filosofia: espaço, tempo, causalidade, possibilidade, o real e o natural, a relação das coisas entre si, a essência do ser...
Na exposição dos Prémios EDP, Mónica Gomes apresenta três obras que investem sobre estas matérias. 5 Pieces of Metaphysics, 2006, é uma projecção simultânea de cinco vídeos em loop. Imagens que convocam fenómenos ou situações atmosféricas e cujos subtítulos configuram o complexo quadro intelectual que pretende desenvolver: Eino Kaila, Enlightenment, Correspondence, Olber’s Paradox e Arrow of Time / September 1978, June 2005.
Antes, vimos 38 Instantes em linha recta, 2006, uma obra constituída por “38 slides ordenados pela linha de tempo em que foram fotografados e projectados por três projectores de slides que disrompem essa sucessão, sobrepondo e dissolvendo a ordem original das imagens, atribuindo-lhes um novo sentido de tempo”. E, ainda, Linha recta em que o Princípio e o Fim se tocam. E vice-versa, 2006-2007, duas rodas concêntricas que giram em sentidos opostos, instaladas num sistema ou engenho mecânico, que contribui para o efeito estético global e “mágico”, diríamos, da obra. Uma das rodas contém uma sucessão de imagens ou fragmentos de céu azul e, a outra, frases que servem o propósito de legendas, quando cruzadas numa pequena caixa de luz, “espécie de janela”. Um statement ou posicionamento da artista face ao mundo, no qual recusa a tal linha de horizonte e procura um olhar vertical, para cima, declarando que “tudo é desmontável, tudo é verdade, não se tem vista panorâmica, terreno parabólico em rotação infinita, são 360º de dúvidas, na vertical”... Uma obra que não é filme mas já não é simples fotografia. E que, de forma deleuziana, nos lança para a aventura seguinte: o movimento.
O MOVIMENTO
Depois do curso de pintura da ESBAL, outro de fotografia na ARCO, e de ter passado pela Maumaus, Mónica Gomes prossegue os seus estudos no Programa Internacional da FAMU, Escola de Filme e TV da Academia de Artes Performativas de Praga, na República Checa, abordando o cinema na sua forma mais tradicional, confrontando-se com modelos operativos e conceptuais que a levam a problematizar diferentes concepções ou terminologias; filmmaker, video artist ou art maker. Diz-nos que gosta de recusar a “questão do media como conotador de um tipo de prática”.
Valoriza o ambiente crítico proporcionado pela Maumaus que, “depois das Belas-Artes, foi sacudir o excesso de discurso estético ou filosófico para abri-lo a uma maior consciência da dimensão política e social que essas dialécticas podem ter”, sendo que, “das Belas-Artes, fica a atenção dada à estética e à imagem”, revela-nos a artista.
A opção de ir para Praga, para uma escola de cinema, é justificada: “Quero explorar o campo da imagem cinemática – que extrapola as relações de espaço – a que geralmente se dedica a instalação, mas que não se constringe à sala escura do cinema”. Um campo que lhe permite, igualmente, discutir as diferenças e os contactos entre documento e ficção, explorando, ainda, a linguagem cinematográfica, de forma mais actualizada. “A questão do filme é, neste momento, muito importante para mim, porque desde há algum tempo que me preocupo com as questões do movimento. De alguma forma, assistimos a uma expansão do seu campo de actuação, de experimentação, introduzindo novos elementos inerentes a este meio produtor de imagens. O documento, a ficção, o tempo e o espaço, a narrativa ou a sua ausência (impossibilidade?), a montagem, a edição, o guião. Confronta-se com outros tempos e especificidades resultantes da produção de um filme, “muito mais lenta”. O percurso de Mónica Gomes é marcado pela vontade de explorar a ideia de tempo, no âmbito do espaço da subjectividade e da vida. Em que direcção anda o tempo? É circular? Como é que habitamos estas estruturas e como é que lemos os acontecimentos e os fenómenos humanos? Estas perguntas são constantes em algumas das suas obras.
“O tempo não tem nenhuma realidade. Quando nos parece longo, é longo, e quando nos parece curto, é curto, mas ninguém sabe na realidade a sua verdadeira extensão”, escreveu Thomas Mann, em A Montanha Mágica). O trabalho de Mónica Gomes é sobre observação, como nos diz, “denunciando os olhos que percepcionam enquanto olhar contaminado de subjectividade e Amor”.


in L+Arte Novo Talento, Lisboa, Fevereiro, 2007.